terça-feira, 5 de maio de 2015

A Rádio Vitrola da Estação – Idos de 1956 e Seguintes


Quando soube que no Jornal das Quinze, na Vitrola da Estação, o safado do Picoto ia dizer sobre os rumos da política do Estado, não me contive com poucos sorrisos: gargalhei o quanto pude. E nesse intervalo de piadas, me engordei com um bando de rosquinhas de nata que minha avó fazia quando estava de bom humor – muito longe de sua natureza. A velha me dizia sempre que essas histórias do rádio eram conversa fiada, de gente que não tinha muito que fazer. Era o típico discurso enfadonho que costumava expressar para se fazer sabida além dos demais. Nunca pude negar que a Mercedes era mesmo uma feiticeira dos temperos, e conhecia mais da medicina que muito “topetinho” formado em Niterói ou na Santa Casa da USP. Meu pai dizia, quando ainda andava por aqui, que minha avó era uma estranha figura no mundo de rotinas.

Era muito engraçado como o tempo havia passado, e agora eu dizia assim de minha avó, num tom irônico não maldoso, que fazia a velha se morder de raiva enquanto corria atrás de mim com dois ou três panos de prato, profetizando azares e despejos insensatos. Minutos depois eu já me escondia no porão do Videl, o Manoel da esquina, que aos gritos me punha pra fora de lá, arremessando meia dúzia de caroços de abacate sobre meus cabelos. Eu me ria um tanto, e depois furtava a bicicleta do Jair ou do Lano, enquanto os mancebos corriam descalços com pedras na mão:

- Volta, Biel! Frangote “duma figa”!

O ponteiro já marcava quinze horas, e eu ainda estava por ali, com uma tigela cheia de roscas de nata apoiada nas pernas cruzadas e um copo de leite gelado nas mãos. A Radio Vitrola da Estação já estava sintonizada e chiava um pouco. Amaury já dizia um monte de besteiras sobre o campeonato mineiro e também sobre as madrugadas agitadas de Belo Horizonte. A bossa nova se estampava por ali, assim como o fazia nas areias do Rio de Janeiro. Vez ou outra podíamos escutar algum timbre glorioso, e então percebíamos a voz de Vinícius e os anúncios certeiros de “O Orfeu da Conceição” – a bela história de Orfeu e Eurídice expressa no samba de Morais.

Naquela tarde, a programação estava um pouco chata, exceto pela música. A Rádio Vitrola da Estação estava atrasada com as metas. O Picoto ainda não chegara ao estúdio para dar seu parecer sobre os rumos do Estado, e toda aquela “lenga-lenga” do campeonato mineiro, dos meados da década, estava chata e densa. Começou a chover lá fora, e vi de longe o senhor que vendia amendoim sair correndo com sua carroça e se esconder debaixo das beiradas do ponto de trem, próximo à fábrica de botões e artigos de costura. Embora sob um tédio sem fim, a tarde do dia sete-de-agosto estava cheia de detalhes – ou ao menos era assim que eu observava, sentado na poltrona, olhando a janela e escutando as lorotas da Vitrola.

Durante alguns minutos, falaram dos Anos Dourados, do Presidente Bossa Nova, e da Recente Brasília, cheia de detalhes de Niemeyer com as novas linhas da arquitetura nacional, na figura expressa da capital do Estado, no centro do planalto que cobria Goiás. Juscelino era o “diamante” da redemocratização que vinha após o Estado Novo, à Constituição Outorgada de 1937 (a Polaca dos olhos de Vargas, fascista em suas origens). J.K., em sentido geral, era o presidente que vinha logo após a Grande Guerra, que trazia para o Brasil o sentimento da democracia (era o que diziam na Rádio Vitrola).

Naquela tarde ainda discorreram muito sobre Carybé, que fora a São Paulo, em meados de 1956, trabalhar n’O Cangaceiro, de Lima Barreto. O artista fez 1.600 desenhos para as cenas do filme. Era a primeira vez que uma produção cinematográfica havia sido desenhada, cena por cena. Carybé ainda foi diretor artístico e figurante do filme. Era um requinte para o tesouro da cultura nacional.

Já passava das dezesseis horas e o safado do Picoto ainda não dera as caras para falar sobre os rumos do Estado. Minhas roscas de nata já haviam exaurido sem ensaio. Ao fundo do copo, só havia espuma do leite, e aquele ainda se mantinha resfriado. A chuva cessara. José Maria das Dores voltava risonho para o cruzamento da avenida com sua carroça de amendoim e pipoca. Minha avó cantarolava sem movimentar os lábios enquanto fiava alguns pontos na agulha, com as mãos cheias de dedal. Na verdade, intercalava sua atividade de costura com a de encerar o chão com as pantufas surradas. Ria-se solitária de si mesma, da angústia de viver consigo, viúva em semblante e alma.

Ouvi a voz do Picoto. O rádio chiou. A chuva voltou a cair de forma brusca (José Maria das Dores voltou-se correndo).



(...) é nosso novo compromisso para com o município, e temos total apoio da Direita. A administração do Estado tem feito montante considerável (...)”.

“(...) as Secretarias de Estado serão indiretamente responsabilizadas (...)”.



Em pouco tempo, depois de chiar um tanto, a Rádio Vitrola já havia mudado sua programação. Picoto sequer falara sobre algo relevante. E a chuva não havia colaborado para sintonia da estação. Não me importei muito, pois de fato não esperava com ansiedade, mas sim com o fito de aproveitar o ócio da tarde que caía pela cidade. Creio que bebi mais dois copos cheios de leite e comi outra tigela de roscas de nata. Minha avó ainda fiava constantemente com a agulha na mão e os tantos dedais. José Maria das Dores já se irritava com a chuva que oscilava, fazendo-o correr para cima e para baixo com ares de desconforto.

Pouco tempo depois, o comentarista bocó do esporte enfatizou um pouco a contratação de Pelé para o Santos. Poderiam ter dito muito mais que apenas ensejos futebolísticos. Era o ano da Bossa Nova, de Vinícius, Tom e João Gilberto. Entretanto, já era bem mais confortável que ouvir apenas acerca da aliança PTB/PSD e sua vitória ao lançar Juscelino Kubitschek para a presidência republicana. Falou-se muito do Plano de Metas e das consequências do desenvolvimento nacional, mas eu preferia muito mais ficar de frente para o pé de jabuticabas, esperando as negrinhas caírem feito bobas e catar todas com a barra da camiseta, feito uma bolsa.

Eu não me prendia tanto, mas a Rádio Vitrola da Estação era o tipo de entretenimento que todo o povo de Belo Horizonte e sua região apreciavam. Eram poucos os que possuíam o benefício da TV a cores, para assistir os anos dourados estampados na Globo daqueles tempos. Minhas memórias eram tantas que mal pude sequer duvidar dos detalhes e do modo como vinham assim em minha cabeça, como num processo de gestação lenta e frágil.

Naqueles dias, não ouvi falar de Picoto outra vez: apenas sobre mais atualizações do campeonato mineiro e sobre Pelé. Com o tempo fui esquecendo a Vitrola, e de repente não mais me lembrava de sintonizar a estação para ouvir os comentários do esporte ou do sensacionalismo dos midiatistas que apresentavam o noticiário. E parece que minha avó também não mais se ria das besteiras que se ouvia no Rádio. Ouvi seus murmúrios enquanto rezava a “Ave-Maria”, por volta das dezoito horas, todos os dias, até o tempo em que a vida lhe faltou e ela caiu por ali mesmo, cheia de luz no apagão dos sentidos.

Picoto virou lenda na boca do povo. Cassaram-no dois anos depois sob a égide de suspeitas de corrupção política. Pelé continuou fazendo sucesso por tempos corridos. Brasília se estruturou de forma muito bela e planejada. A gestão de Juscelino não esteve longe das críticas dos opositores. E no Congresso Nacional, sua principal resistência deu-se através da União Democrática Nacional (UDN). Jânio Quadros assumiu, em 1961, a presidência. Pouco tempo depois, em uma grande variação do posto republicano, o Brasil foi tomado pelo Golpe Militar e ali implantou-se a ditadura sob os olhos de medo. Era o fim da construção democrática, a supressão do Estado Social e a concentração de poder sobre as mãos do Executivo.

Não me lembro muito do que houve após o choque da ditadura no país. Não conversávamos mais sobre muitas coisas nas ruas, e a Vitrola foi obrigada a fechar suas portas e consequentemente sua sintonia, pois recusou-se a apoiar os militares em suas narrativas desenfreadas.

O fim dos anos da Bossa me pareceu dolorido, mesmo na pouca idade. Já me dava bem com os sons de Vinícius e seu samba patriota. Durante muitos anos, presenciei os destroços causados pelo regime militar, o estabelecimento da censura e o auge da arbitragem. E que falta eu sentia da Rádio Vitrola da Estação e de todos os comentários patéticos do Picoto sobre política e Administração Pública. Que falta eu sentia do quintal da Mercedes, minha avó encasquetada com os ritmos modernos. Sua presença me fazia bem o quanto pudesse, e a velhota mal sabia como me sentia feliz ao comer de suas roscas de nata e beber leite sentado no sofá, observando os tropeços de José Maria das Dores com a carrocinha.

Os tempos não voltam, e os anos não os trazem de forma alguma. Foi-se tudo o que me lembro.


R. Villas Boas









quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

A Última Torre depois da Aldeia



A noite já se mostrava um tanto escura, e avançava por entre os rochedos distantes dos Distritos de Cima. Os pássaros já haviam partido para algum lugar longínquo, onde ainda pudessem sacudir suas penas sob o sangrar do céu, que morria lentamente. Um vento frio e silencioso jogou para longe algumas folhas secas que o outono trouxera. Jazia por ali um sentimento pálido, sem muitos requintes. As árvores mantinham-se tristes e imóveis em sua natureza de meios momentos. Não havia mais ninguém na estrada que dava para a vila. A ponte parecia se erguer como uma sombra assustadora sobre o rio de águas muito frias e escuras, à medida em que um bater de asas frenético ainda tentava fugir para muito além do que fora o último dia do sexto mês.

Gerald vestia apenas uma capa negra sobre suas vestes pesadas. As botas estavam cheias de lama, salpicadas de húmus do pântano, e sobre seus ombros, um abutre sistemático grotejava insatisfeito. Além das passadas preguiçosas do homem, não se ouvia ruído algum na estrada, que gradativamente ia perdendo sua nitidez pela sombra que caía.

O desertor continuou sua caminhada sem destino, esquivando-se dos possíveis olhares de emboscada, aos quais atribuía julgamentos indecisos. Era estranho como os caminhos da Aldeia-depois-do-vale haviam se modificado. Há muitos anos corridos ainda era possível avistar camponeses por ali, dando de ombros ao sol quente, que agora mal se exibia. “Eram novos tempos” – dizia Hipátia, num esgar confuso que somente Arn entendia. E fora mesmo desse vínculo que partira o traidor do Estado, e não mais sabia em que direção seguir, sem que se lembrasse veementemente das colheitas das terras distantes.

Uma chuva fina começou a cair lentamente, na medida em que Gerald caminhava sem muitos objetivos. Os pingos salpicavam-lhe o rosto sem feições, e de certa forma lavavam toda a escória em meio à qual se infiltrara, como num glossário de páginas medievais. E, não obstante, o medievo parecia-lhe cada vez mais indesejável, a julgar pelas subordinadas atuações do Reino da Grande Gália-Além-Do-Mar. Não havia mais silêncio na estrada: o abutre estava insatisfeito nos ombros do desertor, e de repente levantou vôo para longe, não se importando muito com a olhada fugaz que Gerald lançara quando de seu ato. Apenas sumiu em meio a escuridão que cobria o caminho, repleto de pedras e outros objetos naturais que insistiam marcar presença naquele palco solitário. Trovejava forte, e a intervalos regulares um clarão sorria no céu, como se gargalhasse da desgraça do homem que caminhava sem prazeres evidentes.

A poucos metros adiante um pequeno homem de nariz adunco começou a se materializar nas sombras. Foi se aproximando e pareceu cada vez mais baixo e insignificante, na medida em que trotava rapidamente. Quando parou estatelado diante do desertor, o homem baixo apenas sinalizou com a cabeça e ambos continuaram a caminhar para junto de um portão alto que ficava logo ao final da estrada. A entrada protegia uma grande fortaleza de pedras quase negras. Toda a muralha era iluminada por tochas enormes, que não se apagavam na chuva, sendo estas as únicas luzes presentes ao final da estrada. A Aldeia-depois-do-vale sumira a alguns passos atrás, e um frio cortante pareceu invadir cada centímetro das vestes de Gerald.

- Como se sente caminhando para a morte, homem? – quis saber o outro de nariz adunco, num certo esgar insensato.

O outro não respondeu. Apenas pigarreou e manteve-se em silêncio, não manifestando interesse no diálogo que possivelmente viria a calhar.

- Então? – tornou o homem baixo.

- Não posso sentir muito além de honra – respondeu Gerald.

- Honra? Pelos nove Deuses, homem! Estás indo para tua morte e sente-se honrado?

- Sim – respondeu o desertor calmamente, sem se assustar. Por um momento pensou em Hipátia, em Arn e nos sete meninos que buscavam leite e pães para a aldeia.

- O que foi que fizeste para estar caminhando para A Última Torre do Norte? – indagou Asturgo, o anão.

- Por que tanto lhe interessam as histórias de um desertor do Reino de seu Senhor? Sua missão não é apenas levar-me até A Torre?

- Não seja irredutível, desertor – retrucou o outro – Gerald, não é? Gerald dos Reinos Austrais, das Províncias Sucumbidas, filho de Alastor de Amberágo, e antigo Senhor da Costa dos Vales Fortes de Nômeda (...)? Por que caminha para a morte, homem?

Gerald apenas fixou os olhos em um ponto indeciso e continuou caminhando por entre as calçadas que havia além do Grande Portão. Algumas carroças estavam posicionadas de frente para tendas lacradas, e um velho meio encardido amarrava alguns cordões de cipó em uma das patas de seu cavalo cansado. Olhou para o desertor e cuspiu, como se cumprimentasse o óbvio.

- E então? Por que estás indo morrer, Gerald? – insistiu Asturgo – Não sente ódio de meu senhor?

- O Príncipe que governa o Estado é o maior de todos os senhores, pequeno homem. É dele o poderio e a força que sustentam este Reino, e a ele devemos todas as saudosas admirações. Não nos cabe odiá-lo ou detestá-lo por ações tomadas em prol do Estado. Sua conduta é inquestionavelmente áurea sobre nossos corpos. Devemos amar o Príncipe, o governante, e qualquer que seja o chefe que detenha o brasão político. A coletividade se sustenta pela harmonia dos grupos, das decisões, do cenário e das ordens de todo este Reino. Eu o amo, pois devo amá-lo, e morrerei amando-o sem menos intensidade. As mãos do Príncipe são como a voz dos Deuses. De minha morte depende o Reino para que se cumpra o que foi acordado para sua formação. Um homem tem o dever honrar o teu senhor, e se preciso for: entregar tua vida para a consumação política de seu Estado.

Asturgo olhou-o sem piscar os olhos, absorto no que Gerald dissera. Paralisou-se.

- Não nos demoremos – disse o desertor – o Príncipe nos espera. Não devemos nos demorar em devaneios pelo caminho. Conduza-me até A Torre.

Nada mais disseram. Os dois caminharam juntos até uma curva que dava para um poço fundo, cortaram duas quebradas estreitas e sumiram na escuridão, sem saber muito quais seriam os sentidos dos próximos momentos. A noite pareceu chorar durante alguns minutos. Logo os trovões cessaram e uma luz fraca acendeu-se no último pavimento da muralha.



R.VillasBoas

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A Quinta Epístola


Vigésima quinta semana - em algum ponto de terra sobre o mar.

Caríssimo Pierre,


Não mais tive notícias de Alice e de seus sobrinhos que viajavam conosco. Fomos surpreendidos por um naufrágio à beira da costa leste de Madagascar. Neste episódio deixou-se Juan e um outro de quem não me recordo muito bem. Ainda nos abala um sentimento de susto e certo receio de continuar pelo mar. Desejo apenas que toda essa guerra acabe e que possamos voltar para a aldeia.
           Edgard não tem respondido nenhuma das cartas que enviamos. Tudo tem estado tão sombrio, que qualquer expectativa torna-se vitória perante nossos olhos desesperados, cheios de angústia. Durante todo esse tempo, tenho sentido falta de todas as suas músicas e do som da gaita-de-manú (belos como todos os momentos junto d’O Grande Assni).
         Ademais, digo que minha união forçada com Johan não agrada a nenhum de nós, mas somente aos interesses hegemônicos dos Distritos de Cima e Além-Mar.


Não oscile no retorno.


Olga Al’Sanni 
[R.VillasBoas]

terça-feira, 16 de setembro de 2014

A Quarta Epístola

Última noite de verão – em algum pico solitário de Trollheimen

Prezado Edgard,

Já faz um ano e alguns dias corridos que recebi sua última carta, e certamente através desta que lhe envio, saberá que não estou morto. Os dias estiveram muito árduos por aqui, e estou tão longe de nosso povo que mal consigo criar expectativas de voltar para onde corre o Rio em que nos banhávamos quando crianças. A maioria dos entes ficou por lá e, longe disso, jamais estabeleci contato com qualquer um que fosse. Começo a me esquecer dos olhos, dos sorrisos; nada é como antes.
          Fui feito prisioneiro há cerca de onze meses. Já estive na Polônia, em alguns terrenos da Rússia, e agora mantenho morada em uma caverna baixa, aos arredores de Trollheimen, uma cadeia no interior da Noruega. Presumo que hoje seja o último dia do verão por aqui, o que de fato me assusta, devido às baixíssimas temperaturas.
        Fiquei em estado de esmo quando li suas correspondências, e peço desculpas por não ter nunca conseguido respondê-las. Minha vida esteve sob a guarda de dois generais do exército do sul. Estão cada vez mais hegemônicos pelas bandas dos Distritos de Cima e Além Mar. Houve mortes na vila. Helena se foi, devo dizer (e espero poder confortá-lo ao menos com esta epístola, meu caro amigo; foi brava nossa heroína). São poucas as lembranças que tenho daqueles dias em que estivemos comendo e bebendo à mesa, sem o poderio da guerra que cresce dia após dia. Não mais conheço civilizações.
          Um curandeiro de nome Akzüz tem me trazido comida o quanto pode. Por vezes desaparece durante semanas. Tenho extirpado a fome, caçando animal qualquer que apareça.
         Espero que possamos nos encontrar outra vez. Sinto falta de toda a irmandade. Aguardarei ansioso por seu retorno, e farei orações aos Deuses Antigos para que vos guarde em cada batalha e caminho que seguir.

Esperando que esteja bem,

Olavo Dimitri.
[R.VillasBoas]



PS: consegui escapar há cerca de dois meses, e desde então tenho saltado de territórios frequentemente. Perdi uma das orelhas na fuga. As aves sempre saberão onde me encontrar.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Crônica de um Inverso

Já imaginou tudo bem alinhado, andando em passadas medidas e percorrendo traços firmes? Já imaginou madrugadas claras e sem silêncio... sem cochicho? Imaginou o inverso, se tudo corresse contra as rotinas?
          Mães desenterrariam seus filhos muito velhos - ou jovens demais - e descobririam que a alma já havia lhes deixado a carne; então sentariam por alguns minutos até que um bando de anjos lançariam ao corpo a vida que já faltava, mas que doravante seria soprada. Então os velhos filhos começariam a rejuvenescer calma e lentamente; trocariam as camas por cadeiras de balanço e começariam a pescar. Deixariam as aposentadorias e iriam ingressar na carreira de trabalho, do topo à base. De grandes chefes e gerentes, tranformariam-se em funcionários de fidelidade, depois recém-formados, estagiários, e por fim começariam a aprender sobre o que tanto havia sido feito.
          Em seguida, da fase adulta entrariam na adolescência, para então alcançarem a puberdade. Logo tornariam-se crianças espertas, rebeldes; e então: inocentes, carentes e sem pecado. Como em um piscar de olhos desaprenderiam a andar, perderiam a fala e voltariam aos seios maternos. Com o tempo regredindo, seriam sugadas pelo útero e ali permaneceriam quentes e confortáveis, até que o volume de suas células fosse reduzido, despedaçado e desmembrado, como a morte mais bela e graciosa do fim de um capítulo.
          Pois os frutos, assim, perderiam o mal cheiro, as cores de putrefação; ficariam bonitos e ganhariam tons de verde, até que, reduzidos, pudessem esconder seu corpinho quase nu e se tranformassem em flores grandes e repolhudas. E por fim, seriam desmembrados em pontinhos de fecundação e partiriam para o fundo escuro da terra.

R.VillasBoas

Uns Cem Anos


Eu costumava andar sempre pelos mesmos campos, aqueles que cortavam a clareira das terras do norte, onde começavam os primeiros vestígios de civilização urbana. Ali a grama era bem verde, e as árvores, muito gentis.
          Quando eu andei por cerca de cento e sessenta anos, seguindo sempre a mesma rotina incansável de ir e vir, percebi que havia um sobrado de cor branca que, por ora, também era verde de tons claros. Na verdade eu não me lembro da cor, acabo de inventá-la para não tomar postura de mentiroso. Era um sobradinho muito alto; não tão alto; era minúsculo. Que disparate!
          A velha Eunice, de cabelos sujos feito terra, ainda me oferecia torta de jambo com cristais de laranja, mesmo depois de todo aquele século percorrido. Eu desejava que a velhota morresse logo e levasse com ela aqueles bolos horríveis que insistia em me oferecer. Meus olhos se fechavam, os lábios formavam um sorriso forçado e as pernas me levavam para muito longe, onde o pensamento desejava desgraças à mulher que fazia confeitos de jambo. Quem é que gosta de jambo?!
          Comecei a me distanciar para outros cantos, onde as águas do litoral batiam serenas e o vento açoitava os panos da barraca em que dormiam os sem-vergonhas que não tinham seus aposentos. Era o extremo norte, e ali não se podia ver mais o sobradinho cuja cor não me lembro, tampouco a sujeira da velha desgraçada da Rua 15, do terceiro quarteirão.
          Sabe que depois de um tempo (uns cem ou duzentos anos, talvez), a velha morreu de pura juventude da alma? Dizem que a pobre simplesmente caiu dura e seu espírito saiu gritando aos ventos, feliz da conta por conseguir libertar-se do corpo infame e obsoleto da senhora que fazia aquelas porcarias em que se colocava jambo e laranja cristalizada.
          Outro dia - depois de muito tempo - fiquei com fome e tirei da bolsa um pedaço pequeno de pão de aspecto corado com alguns cristais cítricos em sua superfície. Tinha cheiro de laranja e um sabor excelente. Estava ali há gerações incontáveis e eu amava me deliciar com aquilo. Eu amava bolo de jambo!

R.VillasBoas

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Mariana de Albuquerque

Sinhá Mariana era o tipo de moça que cabia em qualquer conversa de gente decente – diziam sempre os holandeses que haviam se instalado na Província. Era donzela de finos requintes, ainda que não os exibisse de forma gutural. Suas tranças pareciam feitas do bicho da seda: brilhavam feito asa de mosca grande, quando batidas ao sol. Era a pretendida de Raul Dos Distritos de Cima. Não o queria.
          Mariana foi-se tão cedo dessa vida quanto pôde chegar. Não aguentou por muitos dias a vergonha de ser tida por gente ignorante, como o eram as mulheres daqueles tempos passados, sem muitos direitos garantidos. Mariana não se retinha aos nós dos lenços, tampouco aos pontos cruzados do bordado que vestia sua avó eloqüente. A moça ensinava o alfabeto aos negrinhos sem vernáculo, para depois, então, história, música e a geografia maravilhosa das terras douradas em que se carpia o ódio republicano. Era uma vida repleta de enclaves, vindos dos escravocratas. Mariana os odiava – não dava-se com o pai.
          Havia estudado Línguas e Literaturas nos quintais de Coimbra; havia se apaixonado pelo palco acadêmico; queria sê-lo; não podia por ora.
          Foi quando matou-se feito um pássaro. Envenenou-se da forma mais trágica que não consta nos livros. Bebeu de seu próprio vinho, tocou piano, escreveu dois sonetos, rasgou tudo o que vestia e protegia sua intimidade. Jogou-se estirada no corredor em que transitavam os capatazes, abraçada a três livros muito antigos, que tinham-na feito companhia nas noites da universidade. Mariana parecia dormir, e em seguida cobriram-na com seda escura, uma rosa branca entre os dedos; e a imagem do nazareno estampado na cruz vinha consigo no pescoço.

          Mariana de Albuquerque tentou ensinar aos negros. Teve-se por louca. Mariana amou o conhecimento e parece ter firmado com este um casamento de muitos anos correntes. Era uma mulher que ultrapassava os limites das outras. Deveras, fez-se certa. Ah, Mariana! Há quanto tempo não recebo cartas suas!

R.VillasBoas