Quando soube que
no Jornal das Quinze, na Vitrola da
Estação, o safado do Picoto ia dizer sobre os rumos da política do Estado, não
me contive com poucos sorrisos: gargalhei o quanto pude. E nesse intervalo de
piadas, me engordei com um bando de rosquinhas de nata que minha avó fazia
quando estava de bom humor – muito longe de sua natureza. A velha me dizia
sempre que essas histórias do rádio eram conversa fiada, de gente que não tinha
muito que fazer. Era o típico discurso enfadonho que costumava expressar para
se fazer sabida além dos demais.
Nunca pude negar que a Mercedes era mesmo uma feiticeira dos temperos, e
conhecia mais da medicina que muito “topetinho” formado em Niterói ou na Santa
Casa da USP. Meu pai dizia, quando ainda andava por aqui, que minha avó era uma
estranha figura no mundo de rotinas.
Era muito engraçado
como o tempo havia passado, e agora eu dizia assim de minha avó, num tom
irônico não maldoso, que fazia a velha se morder de raiva enquanto corria atrás
de mim com dois ou três panos de prato, profetizando azares e despejos
insensatos. Minutos depois eu já me escondia no porão do Videl, o Manoel da
esquina, que aos gritos me punha pra fora de lá, arremessando meia dúzia de
caroços de abacate sobre meus cabelos. Eu me ria um tanto, e depois furtava a
bicicleta do Jair ou do Lano,
enquanto os mancebos corriam descalços com pedras na mão:
- Volta, Biel! Frangote “duma figa”!
O ponteiro já
marcava quinze horas, e eu ainda estava por ali, com uma tigela cheia de roscas
de nata apoiada nas pernas cruzadas e um copo de leite gelado nas mãos. A Radio Vitrola da Estação já estava
sintonizada e chiava um pouco. Amaury já dizia um monte de besteiras sobre o
campeonato mineiro e também sobre as madrugadas agitadas de Belo Horizonte. A
bossa nova se estampava por ali, assim como o fazia nas areias do Rio de Janeiro.
Vez ou outra podíamos escutar algum timbre glorioso, e então percebíamos a voz
de Vinícius e os anúncios certeiros de “O Orfeu da Conceição” – a bela história
de Orfeu e Eurídice expressa no samba de Morais.
Naquela tarde, a
programação estava um pouco chata, exceto pela música. A Rádio Vitrola da
Estação estava atrasada com as metas. O Picoto ainda não chegara ao estúdio
para dar seu parecer sobre os rumos do Estado, e toda aquela “lenga-lenga” do
campeonato mineiro, dos meados da década, estava chata e densa. Começou a
chover lá fora, e vi de longe o senhor que vendia amendoim sair correndo com
sua carroça e se esconder debaixo das beiradas do ponto de trem, próximo à
fábrica de botões e artigos de costura. Embora sob um tédio sem fim, a tarde do
dia sete-de-agosto estava cheia de detalhes – ou ao menos era assim que eu
observava, sentado na poltrona, olhando a janela e escutando as lorotas da
Vitrola.
Durante alguns
minutos, falaram dos Anos Dourados, do Presidente Bossa Nova, e da Recente
Brasília, cheia de detalhes de Niemeyer com as novas linhas da arquitetura
nacional, na figura expressa da capital do Estado, no centro do planalto que
cobria Goiás. Juscelino era o “diamante” da redemocratização que vinha após o Estado
Novo, à Constituição Outorgada de 1937 (a Polaca dos olhos de Vargas, fascista
em suas origens). J.K., em sentido
geral, era o presidente que vinha logo após a Grande Guerra, que trazia para o
Brasil o sentimento da democracia (era o que diziam na Rádio Vitrola).
Naquela tarde
ainda discorreram muito sobre Carybé, que fora a São Paulo, em meados de 1956,
trabalhar n’O Cangaceiro, de Lima Barreto. O artista fez 1.600 desenhos para as
cenas do filme. Era a primeira vez que uma produção cinematográfica havia sido desenhada, cena por
cena. Carybé ainda foi diretor artístico e figurante do filme. Era um requinte para o tesouro da cultura nacional.
Já passava das
dezesseis horas e o safado do Picoto ainda não dera as caras para falar sobre
os rumos do Estado. Minhas roscas de nata já haviam exaurido sem ensaio. Ao
fundo do copo, só havia espuma do leite, e aquele ainda se mantinha resfriado.
A chuva cessara. José Maria das Dores voltava risonho para o cruzamento da
avenida com sua carroça de amendoim e pipoca. Minha avó cantarolava sem
movimentar os lábios enquanto fiava alguns pontos na agulha, com as mãos cheias
de dedal. Na verdade, intercalava sua atividade de costura com a de encerar o
chão com as pantufas surradas. Ria-se solitária de si mesma, da angústia de
viver consigo, viúva em semblante e alma.
Ouvi a voz do
Picoto. O rádio chiou. A chuva voltou a cair de forma brusca (José Maria das
Dores voltou-se correndo).
“(...) é nosso novo compromisso para com o
município, e temos total apoio da Direita. A administração do Estado tem feito
montante considerável (...)”.
“(...)
as Secretarias de Estado serão indiretamente responsabilizadas (...)”.
Em pouco tempo,
depois de chiar um tanto, a Rádio Vitrola já havia mudado sua programação.
Picoto sequer falara sobre algo relevante. E a chuva não havia colaborado para
sintonia da estação. Não me importei muito, pois de fato não esperava com
ansiedade, mas sim com o fito de aproveitar o ócio da tarde que caía pela
cidade. Creio que bebi mais dois copos cheios de leite e comi outra tigela de
roscas de nata. Minha avó ainda fiava constantemente com a agulha na mão e os
tantos dedais. José Maria das Dores já se irritava com a chuva que oscilava,
fazendo-o correr para cima e para baixo com ares de desconforto.
Pouco tempo
depois, o comentarista bocó do esporte enfatizou um pouco a contratação de Pelé
para o Santos. Poderiam ter dito muito mais que apenas ensejos futebolísticos.
Era o ano da Bossa Nova, de Vinícius, Tom e João Gilberto. Entretanto, já era
bem mais confortável que ouvir apenas acerca da aliança PTB/PSD e sua vitória
ao lançar Juscelino Kubitschek para a presidência republicana. Falou-se muito
do Plano de Metas e das consequências do desenvolvimento nacional, mas eu
preferia muito mais ficar de frente para o pé de jabuticabas, esperando as
negrinhas caírem feito bobas e catar todas com a barra da camiseta, feito uma
bolsa.
Eu não me prendia
tanto, mas a Rádio Vitrola da Estação era o tipo de entretenimento que todo o
povo de Belo Horizonte e sua região apreciavam. Eram poucos os que possuíam o
benefício da TV a cores, para assistir os anos dourados estampados na Globo
daqueles tempos. Minhas memórias eram tantas que mal pude sequer duvidar dos
detalhes e do modo como vinham assim em minha cabeça, como num processo de
gestação lenta e frágil.
Naqueles dias,
não ouvi falar de Picoto outra vez: apenas sobre mais atualizações do
campeonato mineiro e sobre Pelé. Com o tempo fui esquecendo a Vitrola, e de
repente não mais me lembrava de sintonizar a estação para ouvir os comentários
do esporte ou do sensacionalismo dos midiatistas que apresentavam o noticiário.
E parece que minha avó também não mais se ria das besteiras que se ouvia no
Rádio. Ouvi seus murmúrios enquanto rezava a “Ave-Maria”, por volta das dezoito
horas, todos os dias, até o tempo em que a vida lhe faltou e ela caiu por ali
mesmo, cheia de luz no apagão dos sentidos.
Picoto virou
lenda na boca do povo. Cassaram-no dois anos depois sob a égide de suspeitas de
corrupção política. Pelé continuou fazendo sucesso por tempos corridos.
Brasília se estruturou de forma muito bela e planejada. A gestão de Juscelino não
esteve longe das críticas dos opositores. E no Congresso Nacional, sua
principal resistência deu-se através da União Democrática Nacional (UDN). Jânio
Quadros assumiu, em 1961, a presidência. Pouco tempo depois, em uma grande
variação do posto republicano, o Brasil foi tomado pelo Golpe Militar e ali
implantou-se a ditadura sob os olhos de medo. Era o fim da construção
democrática, a supressão do Estado Social e a concentração de poder sobre as
mãos do Executivo.
Não me lembro
muito do que houve após o choque da ditadura no país. Não conversávamos mais
sobre muitas coisas nas ruas, e a Vitrola foi obrigada a fechar suas portas e
consequentemente sua sintonia, pois recusou-se a apoiar os militares em suas
narrativas desenfreadas.
O fim dos anos da
Bossa me pareceu dolorido, mesmo na pouca idade. Já me dava bem com os sons de
Vinícius e seu samba patriota. Durante muitos anos, presenciei os destroços
causados pelo regime militar, o estabelecimento da censura e o auge da
arbitragem. E que falta eu sentia da Rádio Vitrola da Estação e de todos os
comentários patéticos do Picoto sobre política e Administração Pública. Que
falta eu sentia do quintal da Mercedes, minha avó encasquetada com os ritmos
modernos. Sua presença me fazia bem o quanto pudesse, e a velhota mal sabia
como me sentia feliz ao comer de suas roscas de nata e beber leite sentado no
sofá, observando os tropeços de José Maria das Dores com a carrocinha.
Os tempos não
voltam, e os anos não os trazem de forma alguma. Foi-se tudo o que me lembro.
R. Villas Boas
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