terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Gama Borgon

A família Gama Borgon, de todas as demais que haviam transitado por ali, era a mais fundada em princípios rígidos, éticos e pouco receptivo a novas tendências.
          Dos três filhos, dois eram bacharéis em direito pela Universidade de Coimbra, e lecionavam legislação  no Rio de Janeiro com base nos principais critérios de Pádua. No geral era o que as bocas diziam ser o orgulho dos Borgon, ou talvez dos Gama - ambos unidos em um laço forte que havia dobrado certas ilíadas até o topo de uma oligarquia inegável. 
          Ainda que dois deles houvessem requintado certa parte do nome em cujo semblante descansava a ordem de Vila Rica, certa pestana manchara ironicamente a hereditária. A filha entre o primeiro e o último dava-se aos fidalgos; vendia-se em um ato de câmbio e outras reticências de escambo.
         Não havia sequer necessidade para que a rapariga rasgasse de forma promíscua um capítulo da história daquela tirania.

Fernando Freire Fera Ferreira
[Rafael Villas Boas]

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Antes do incêndio

Eu poderia muito bem começar com “era uma vez”, mas a verdade é que não acho prudente. Fique assim, pois, esclarecido o primeiro parágrafo.
       Éramos todos da família Velantouir, de Theodore – ou pelo menos era assim que Tia Amélie nos contava. Dizia que todas as crianças do Deux Tours eram filhas de Theodore e Madeleine, sua esposa gagá. 
         O Deux Tours era um orfanato situado na periferia de Paris, onde viviam cerca de trezentas crianças de todas as idades possíveis até dada faixa. Sei, pois também vivi ali, naquele castelo cinzento que chamavam de nossa casa. Uma pinóia! Só aguentávamos, pois não tínhamos mesmo para onde ir, e Tia Amélie era muito atenciosa, como se seus filhos fossem mesmo as próprias crianças daquele horroroso lugar. Só não gostava quando ela nos obrigava a comer verduras e batata, misturadas em uma sopa rala de poucos temperos que cheirava fortemente a grama recém-aparada.
          Tia Amélie não suportava menções em seu nome.

Jean Pierre
[Rafael Villas Boas]

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O quinto epílogo

Brandenburg, dezembro de 1989

Ainda que famílias vivessem livres por ali, aquele fora de longe o cenário de outrora. Parecia, mesmo depois de certos anos, que o cheiro de sangue e pele carbonizada pairava pela densidade em cujos intervalos transitava o ar.
          Havia algum ou outro retalho de tecido acinzentado, listrado em tons de branco, retendo numerações e códigos incompreensíveis. Era possível ouvir gritos e ranger de dentes, ao passo que armas tomavam cena juntamente com um líquido avermelhado que saltava em direção às paredes.
          Tardou até que o muro caísse. Homens e mulheres puderam se amar, cultuar sua fé e usufruir de certa glória. A Alemanha parecia estar retomando seus princípios - não mais que rotinas.

Heinz F. Hoffmann
[Rafael Villas Boas]


segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Soneto de Saudade

Lembro-me mesmo do encanto vivo
Onde os negros cantavam contentes
Ainda que presos entre correntes
E nas marcas ardidas, sol ativo

Saudades tenho da lenha do fogo
Sentimento de orgulho perdido
Resgatado no semblante escondido
Buscando, agora, perdões quase em rôgo

Campinas de Cipriano fugidas
Em seios tão quentes corria o verde
Perdendo os medos em faces garridas

No mastro central era a cruz tão branca
À princesa abriu caminhadas tristes
Que em sua Lei selou a nobre tranca

R.VillasBoas