A
noite já se mostrava um tanto escura, e avançava por entre os rochedos
distantes dos Distritos de Cima. Os pássaros já haviam partido para algum lugar
longínquo, onde ainda pudessem sacudir suas penas sob o sangrar do céu, que
morria lentamente. Um vento frio e silencioso jogou para longe algumas folhas
secas que o outono trouxera. Jazia por ali um sentimento pálido, sem muitos
requintes. As árvores mantinham-se tristes e imóveis em sua natureza de meios
momentos. Não havia mais ninguém na estrada que dava para a vila. A ponte
parecia se erguer como uma sombra assustadora sobre o rio de águas muito frias
e escuras, à medida em que um bater de asas frenético ainda tentava fugir para
muito além do que fora o último dia do sexto mês.
Gerald
vestia apenas uma capa negra sobre suas vestes pesadas. As botas estavam cheias
de lama, salpicadas de húmus do pântano, e sobre seus ombros, um abutre
sistemático grotejava insatisfeito.
Além das passadas preguiçosas do homem, não se ouvia ruído algum na estrada,
que gradativamente ia perdendo sua nitidez pela sombra que caía.
O
desertor continuou sua caminhada sem destino, esquivando-se dos possíveis
olhares de emboscada, aos quais atribuía julgamentos indecisos. Era estranho
como os caminhos da Aldeia-depois-do-vale
haviam se modificado. Há muitos anos corridos ainda era possível avistar
camponeses por ali, dando de ombros ao sol quente, que agora mal se exibia.
“Eram novos tempos” – dizia Hipátia, num esgar confuso que somente Arn
entendia. E fora mesmo desse vínculo que partira o traidor do Estado, e não
mais sabia em que direção seguir, sem que se lembrasse veementemente das
colheitas das terras distantes.
Uma
chuva fina começou a cair lentamente, na medida em que Gerald caminhava sem
muitos objetivos. Os pingos salpicavam-lhe o rosto sem feições, e de certa
forma lavavam toda a escória em meio à qual se infiltrara, como num glossário
de páginas medievais. E, não obstante, o medievo parecia-lhe cada vez mais
indesejável, a julgar pelas subordinadas atuações do Reino da Grande
Gália-Além-Do-Mar. Não havia mais silêncio na estrada: o abutre estava insatisfeito
nos ombros do desertor, e de repente levantou vôo para longe, não se importando
muito com a olhada fugaz que Gerald lançara quando de seu ato. Apenas sumiu em
meio a escuridão que cobria o caminho, repleto de pedras e outros objetos
naturais que insistiam marcar presença naquele palco solitário. Trovejava
forte, e a intervalos regulares um clarão sorria no céu, como se gargalhasse da
desgraça do homem que caminhava sem prazeres evidentes.
A
poucos metros adiante um pequeno homem de nariz adunco começou a se
materializar nas sombras. Foi se aproximando e pareceu cada vez mais baixo e
insignificante, na medida em que trotava rapidamente. Quando parou estatelado
diante do desertor, o homem baixo apenas sinalizou com a cabeça e ambos
continuaram a caminhar para junto de um portão alto que ficava logo ao final da
estrada. A entrada protegia uma grande fortaleza de pedras quase negras. Toda a
muralha era iluminada por tochas enormes, que não se apagavam na chuva, sendo
estas as únicas luzes presentes ao final da estrada. A Aldeia-depois-do-vale sumira a alguns passos atrás, e um frio
cortante pareceu invadir cada centímetro das vestes de Gerald.
-
Como se sente caminhando para a morte, homem? – quis saber o outro de nariz
adunco, num certo esgar insensato.
O
outro não respondeu. Apenas pigarreou e manteve-se em silêncio, não
manifestando interesse no diálogo que possivelmente viria a calhar.
-
Então? – tornou o homem baixo.
-
Não posso sentir muito além de honra – respondeu Gerald.
-
Honra? Pelos nove Deuses, homem! Estás indo para tua morte e sente-se honrado?
-
Sim – respondeu o desertor calmamente, sem se assustar. Por um momento pensou
em Hipátia, em Arn e nos sete meninos que buscavam leite e pães para a aldeia.
-
O que foi que fizeste para estar caminhando para A Última Torre do Norte? – indagou Asturgo, o anão.
-
Por que tanto lhe interessam as histórias de um desertor do Reino de seu
Senhor? Sua missão não é apenas levar-me até A Torre?
-
Não seja irredutível, desertor – retrucou o outro – Gerald, não é? Gerald dos
Reinos Austrais, das Províncias Sucumbidas, filho de Alastor de Amberágo, e
antigo Senhor da Costa dos Vales Fortes de Nômeda (...)? Por que caminha para a
morte, homem?
Gerald
apenas fixou os olhos em um ponto indeciso e continuou caminhando por entre as
calçadas que havia além do Grande Portão. Algumas carroças estavam posicionadas
de frente para tendas lacradas, e um velho meio encardido amarrava alguns
cordões de cipó em uma das patas de seu cavalo cansado. Olhou para o desertor e
cuspiu, como se cumprimentasse o óbvio.
-
E então? Por que estás indo morrer, Gerald? – insistiu Asturgo – Não sente ódio
de meu senhor?
-
O Príncipe que governa o Estado é o maior de todos os senhores, pequeno homem.
É dele o poderio e a força que sustentam este Reino, e a ele devemos todas as
saudosas admirações. Não nos cabe odiá-lo ou detestá-lo por ações tomadas em
prol do Estado. Sua conduta é inquestionavelmente áurea sobre nossos corpos.
Devemos amar o Príncipe, o governante, e qualquer que seja o chefe que detenha
o brasão político. A coletividade se sustenta pela harmonia dos grupos, das
decisões, do cenário e das ordens de todo este Reino. Eu o amo, pois devo
amá-lo, e morrerei amando-o sem menos intensidade. As mãos do Príncipe são como
a voz dos Deuses. De minha morte depende o Reino para que se cumpra o que foi
acordado para sua formação. Um homem tem o dever honrar o teu senhor, e se
preciso for: entregar tua vida para a consumação política de seu Estado.
Asturgo
olhou-o sem piscar os olhos, absorto no que Gerald dissera. Paralisou-se.
-
Não nos demoremos – disse o desertor – o Príncipe nos espera. Não devemos nos
demorar em devaneios pelo caminho. Conduza-me até A Torre.
Nada
mais disseram. Os dois caminharam juntos até uma curva que dava para um poço fundo,
cortaram duas quebradas estreitas e sumiram na escuridão, sem saber muito quais
seriam os sentidos dos próximos momentos. A noite pareceu chorar durante alguns
minutos. Logo os trovões cessaram e uma luz fraca acendeu-se no último
pavimento da muralha.
R.VillasBoas