quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

A Última Torre depois da Aldeia



A noite já se mostrava um tanto escura, e avançava por entre os rochedos distantes dos Distritos de Cima. Os pássaros já haviam partido para algum lugar longínquo, onde ainda pudessem sacudir suas penas sob o sangrar do céu, que morria lentamente. Um vento frio e silencioso jogou para longe algumas folhas secas que o outono trouxera. Jazia por ali um sentimento pálido, sem muitos requintes. As árvores mantinham-se tristes e imóveis em sua natureza de meios momentos. Não havia mais ninguém na estrada que dava para a vila. A ponte parecia se erguer como uma sombra assustadora sobre o rio de águas muito frias e escuras, à medida em que um bater de asas frenético ainda tentava fugir para muito além do que fora o último dia do sexto mês.

Gerald vestia apenas uma capa negra sobre suas vestes pesadas. As botas estavam cheias de lama, salpicadas de húmus do pântano, e sobre seus ombros, um abutre sistemático grotejava insatisfeito. Além das passadas preguiçosas do homem, não se ouvia ruído algum na estrada, que gradativamente ia perdendo sua nitidez pela sombra que caía.

O desertor continuou sua caminhada sem destino, esquivando-se dos possíveis olhares de emboscada, aos quais atribuía julgamentos indecisos. Era estranho como os caminhos da Aldeia-depois-do-vale haviam se modificado. Há muitos anos corridos ainda era possível avistar camponeses por ali, dando de ombros ao sol quente, que agora mal se exibia. “Eram novos tempos” – dizia Hipátia, num esgar confuso que somente Arn entendia. E fora mesmo desse vínculo que partira o traidor do Estado, e não mais sabia em que direção seguir, sem que se lembrasse veementemente das colheitas das terras distantes.

Uma chuva fina começou a cair lentamente, na medida em que Gerald caminhava sem muitos objetivos. Os pingos salpicavam-lhe o rosto sem feições, e de certa forma lavavam toda a escória em meio à qual se infiltrara, como num glossário de páginas medievais. E, não obstante, o medievo parecia-lhe cada vez mais indesejável, a julgar pelas subordinadas atuações do Reino da Grande Gália-Além-Do-Mar. Não havia mais silêncio na estrada: o abutre estava insatisfeito nos ombros do desertor, e de repente levantou vôo para longe, não se importando muito com a olhada fugaz que Gerald lançara quando de seu ato. Apenas sumiu em meio a escuridão que cobria o caminho, repleto de pedras e outros objetos naturais que insistiam marcar presença naquele palco solitário. Trovejava forte, e a intervalos regulares um clarão sorria no céu, como se gargalhasse da desgraça do homem que caminhava sem prazeres evidentes.

A poucos metros adiante um pequeno homem de nariz adunco começou a se materializar nas sombras. Foi se aproximando e pareceu cada vez mais baixo e insignificante, na medida em que trotava rapidamente. Quando parou estatelado diante do desertor, o homem baixo apenas sinalizou com a cabeça e ambos continuaram a caminhar para junto de um portão alto que ficava logo ao final da estrada. A entrada protegia uma grande fortaleza de pedras quase negras. Toda a muralha era iluminada por tochas enormes, que não se apagavam na chuva, sendo estas as únicas luzes presentes ao final da estrada. A Aldeia-depois-do-vale sumira a alguns passos atrás, e um frio cortante pareceu invadir cada centímetro das vestes de Gerald.

- Como se sente caminhando para a morte, homem? – quis saber o outro de nariz adunco, num certo esgar insensato.

O outro não respondeu. Apenas pigarreou e manteve-se em silêncio, não manifestando interesse no diálogo que possivelmente viria a calhar.

- Então? – tornou o homem baixo.

- Não posso sentir muito além de honra – respondeu Gerald.

- Honra? Pelos nove Deuses, homem! Estás indo para tua morte e sente-se honrado?

- Sim – respondeu o desertor calmamente, sem se assustar. Por um momento pensou em Hipátia, em Arn e nos sete meninos que buscavam leite e pães para a aldeia.

- O que foi que fizeste para estar caminhando para A Última Torre do Norte? – indagou Asturgo, o anão.

- Por que tanto lhe interessam as histórias de um desertor do Reino de seu Senhor? Sua missão não é apenas levar-me até A Torre?

- Não seja irredutível, desertor – retrucou o outro – Gerald, não é? Gerald dos Reinos Austrais, das Províncias Sucumbidas, filho de Alastor de Amberágo, e antigo Senhor da Costa dos Vales Fortes de Nômeda (...)? Por que caminha para a morte, homem?

Gerald apenas fixou os olhos em um ponto indeciso e continuou caminhando por entre as calçadas que havia além do Grande Portão. Algumas carroças estavam posicionadas de frente para tendas lacradas, e um velho meio encardido amarrava alguns cordões de cipó em uma das patas de seu cavalo cansado. Olhou para o desertor e cuspiu, como se cumprimentasse o óbvio.

- E então? Por que estás indo morrer, Gerald? – insistiu Asturgo – Não sente ódio de meu senhor?

- O Príncipe que governa o Estado é o maior de todos os senhores, pequeno homem. É dele o poderio e a força que sustentam este Reino, e a ele devemos todas as saudosas admirações. Não nos cabe odiá-lo ou detestá-lo por ações tomadas em prol do Estado. Sua conduta é inquestionavelmente áurea sobre nossos corpos. Devemos amar o Príncipe, o governante, e qualquer que seja o chefe que detenha o brasão político. A coletividade se sustenta pela harmonia dos grupos, das decisões, do cenário e das ordens de todo este Reino. Eu o amo, pois devo amá-lo, e morrerei amando-o sem menos intensidade. As mãos do Príncipe são como a voz dos Deuses. De minha morte depende o Reino para que se cumpra o que foi acordado para sua formação. Um homem tem o dever honrar o teu senhor, e se preciso for: entregar tua vida para a consumação política de seu Estado.

Asturgo olhou-o sem piscar os olhos, absorto no que Gerald dissera. Paralisou-se.

- Não nos demoremos – disse o desertor – o Príncipe nos espera. Não devemos nos demorar em devaneios pelo caminho. Conduza-me até A Torre.

Nada mais disseram. Os dois caminharam juntos até uma curva que dava para um poço fundo, cortaram duas quebradas estreitas e sumiram na escuridão, sem saber muito quais seriam os sentidos dos próximos momentos. A noite pareceu chorar durante alguns minutos. Logo os trovões cessaram e uma luz fraca acendeu-se no último pavimento da muralha.



R.VillasBoas

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A Quinta Epístola


Vigésima quinta semana - em algum ponto de terra sobre o mar.

Caríssimo Pierre,


Não mais tive notícias de Alice e de seus sobrinhos que viajavam conosco. Fomos surpreendidos por um naufrágio à beira da costa leste de Madagascar. Neste episódio deixou-se Juan e um outro de quem não me recordo muito bem. Ainda nos abala um sentimento de susto e certo receio de continuar pelo mar. Desejo apenas que toda essa guerra acabe e que possamos voltar para a aldeia.
           Edgard não tem respondido nenhuma das cartas que enviamos. Tudo tem estado tão sombrio, que qualquer expectativa torna-se vitória perante nossos olhos desesperados, cheios de angústia. Durante todo esse tempo, tenho sentido falta de todas as suas músicas e do som da gaita-de-manú (belos como todos os momentos junto d’O Grande Assni).
         Ademais, digo que minha união forçada com Johan não agrada a nenhum de nós, mas somente aos interesses hegemônicos dos Distritos de Cima e Além-Mar.


Não oscile no retorno.


Olga Al’Sanni 
[R.VillasBoas]