sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Uns Cem Anos


Eu costumava andar sempre pelos mesmos campos, aqueles que cortavam a clareira das terras do norte, onde começavam os primeiros vestígios de civilização urbana. Ali a grama era bem verde, e as árvores, muito gentis.
          Quando eu andei por cerca de cento e sessenta anos, seguindo sempre a mesma rotina incansável de ir e vir, percebi que havia um sobrado de cor branca que, por ora, também era verde de tons claros. Na verdade eu não me lembro da cor, acabo de inventá-la para não tomar postura de mentiroso. Era um sobradinho muito alto; não tão alto; era minúsculo. Que disparate!
          A velha Eunice, de cabelos sujos feito terra, ainda me oferecia torta de jambo com cristais de laranja, mesmo depois de todo aquele século percorrido. Eu desejava que a velhota morresse logo e levasse com ela aqueles bolos horríveis que insistia em me oferecer. Meus olhos se fechavam, os lábios formavam um sorriso forçado e as pernas me levavam para muito longe, onde o pensamento desejava desgraças à mulher que fazia confeitos de jambo. Quem é que gosta de jambo?!
          Comecei a me distanciar para outros cantos, onde as águas do litoral batiam serenas e o vento açoitava os panos da barraca em que dormiam os sem-vergonhas que não tinham seus aposentos. Era o extremo norte, e ali não se podia ver mais o sobradinho cuja cor não me lembro, tampouco a sujeira da velha desgraçada da Rua 15, do terceiro quarteirão.
          Sabe que depois de um tempo (uns cem ou duzentos anos, talvez), a velha morreu de pura juventude da alma? Dizem que a pobre simplesmente caiu dura e seu espírito saiu gritando aos ventos, feliz da conta por conseguir libertar-se do corpo infame e obsoleto da senhora que fazia aquelas porcarias em que se colocava jambo e laranja cristalizada.
          Outro dia - depois de muito tempo - fiquei com fome e tirei da bolsa um pedaço pequeno de pão de aspecto corado com alguns cristais cítricos em sua superfície. Tinha cheiro de laranja e um sabor excelente. Estava ali há gerações incontáveis e eu amava me deliciar com aquilo. Eu amava bolo de jambo!

R.VillasBoas

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