terça-feira, 27 de março de 2012

O monólogo de Fernando Freire Fera Ferreira


        Já sinto que as botas me machucam os pés. Confesso que usá-las tem sido muito difícil. O que não entendo é que estas mesmas não me têm os efeitos ligeiros que outrora proporcionaram ao polegar, ou ao gato, ou até mesmo às bravuras do Quixote. Ora, pois eu mesmo sou o Quixote, e só me falta aqui um Sancho escudeiro.
          É inadmissível que não possam e não queiram crer em mim.
          Por estes dias mesmo fui até um daqueles embolorados livros da carochinha e vislumbrei-me em uma das páginas rotas que ali havia; um herói deturpado, repleto de esgares vitoriosos. Já não sei se sou herói bravo ou ladrão ousado. Sei que tenho muito que dizer a esses pobres insolentes que me recusam como ser grandioso. Não podem me culpar se nasci dos Montéquio, mas irmão de Capuletos; impossível para vós, céticos, não para mim, um guerreiro das odisséias vizinhas.
          Ao invés de criticar meus tolos atos, poderiam suprir minhas mil e uma noites que logo se esvaem por entre o céu estrelado, tocando e soprando a cabeleira de Berenice. Ainda sei que são capazes de encontrar meu diadema perdido e entrega-lo àquele que sobreviveu. Assim poderão levá-lo até o guradarroupa, ocultando-o em outro mundo.
          Não sou louco, tampouco perturbado. Acredito na literatura, que me faz viver em um mundo sem igual, o qual jamais se revela àqueles ignorantes. Somos vários em um só; nada pode superar as imensas variedades que nos adornam. Em verdade, tudo que aqui é escrito e nos remete a valores relevantes, tornar-se-á imortal sob as bases dessa imensidão. É só abrir uma página, passar por outra e navegar por esse mundo onde eu mesmo vivo: um livro, uma história...

Fernando Freire Fera Ferreira
[Rafael Villas Boas]