terça-feira, 16 de setembro de 2014

A Quarta Epístola

Última noite de verão – em algum pico solitário de Trollheimen

Prezado Edgard,

Já faz um ano e alguns dias corridos que recebi sua última carta, e certamente através desta que lhe envio, saberá que não estou morto. Os dias estiveram muito árduos por aqui, e estou tão longe de nosso povo que mal consigo criar expectativas de voltar para onde corre o Rio em que nos banhávamos quando crianças. A maioria dos entes ficou por lá e, longe disso, jamais estabeleci contato com qualquer um que fosse. Começo a me esquecer dos olhos, dos sorrisos; nada é como antes.
          Fui feito prisioneiro há cerca de onze meses. Já estive na Polônia, em alguns terrenos da Rússia, e agora mantenho morada em uma caverna baixa, aos arredores de Trollheimen, uma cadeia no interior da Noruega. Presumo que hoje seja o último dia do verão por aqui, o que de fato me assusta, devido às baixíssimas temperaturas.
        Fiquei em estado de esmo quando li suas correspondências, e peço desculpas por não ter nunca conseguido respondê-las. Minha vida esteve sob a guarda de dois generais do exército do sul. Estão cada vez mais hegemônicos pelas bandas dos Distritos de Cima e Além Mar. Houve mortes na vila. Helena se foi, devo dizer (e espero poder confortá-lo ao menos com esta epístola, meu caro amigo; foi brava nossa heroína). São poucas as lembranças que tenho daqueles dias em que estivemos comendo e bebendo à mesa, sem o poderio da guerra que cresce dia após dia. Não mais conheço civilizações.
          Um curandeiro de nome Akzüz tem me trazido comida o quanto pode. Por vezes desaparece durante semanas. Tenho extirpado a fome, caçando animal qualquer que apareça.
         Espero que possamos nos encontrar outra vez. Sinto falta de toda a irmandade. Aguardarei ansioso por seu retorno, e farei orações aos Deuses Antigos para que vos guarde em cada batalha e caminho que seguir.

Esperando que esteja bem,

Olavo Dimitri.
[R.VillasBoas]



PS: consegui escapar há cerca de dois meses, e desde então tenho saltado de territórios frequentemente. Perdi uma das orelhas na fuga. As aves sempre saberão onde me encontrar.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Crônica de um Inverso

Já imaginou tudo bem alinhado, andando em passadas medidas e percorrendo traços firmes? Já imaginou madrugadas claras e sem silêncio... sem cochicho? Imaginou o inverso, se tudo corresse contra as rotinas?
          Mães desenterrariam seus filhos muito velhos - ou jovens demais - e descobririam que a alma já havia lhes deixado a carne; então sentariam por alguns minutos até que um bando de anjos lançariam ao corpo a vida que já faltava, mas que doravante seria soprada. Então os velhos filhos começariam a rejuvenescer calma e lentamente; trocariam as camas por cadeiras de balanço e começariam a pescar. Deixariam as aposentadorias e iriam ingressar na carreira de trabalho, do topo à base. De grandes chefes e gerentes, tranformariam-se em funcionários de fidelidade, depois recém-formados, estagiários, e por fim começariam a aprender sobre o que tanto havia sido feito.
          Em seguida, da fase adulta entrariam na adolescência, para então alcançarem a puberdade. Logo tornariam-se crianças espertas, rebeldes; e então: inocentes, carentes e sem pecado. Como em um piscar de olhos desaprenderiam a andar, perderiam a fala e voltariam aos seios maternos. Com o tempo regredindo, seriam sugadas pelo útero e ali permaneceriam quentes e confortáveis, até que o volume de suas células fosse reduzido, despedaçado e desmembrado, como a morte mais bela e graciosa do fim de um capítulo.
          Pois os frutos, assim, perderiam o mal cheiro, as cores de putrefação; ficariam bonitos e ganhariam tons de verde, até que, reduzidos, pudessem esconder seu corpinho quase nu e se tranformassem em flores grandes e repolhudas. E por fim, seriam desmembrados em pontinhos de fecundação e partiriam para o fundo escuro da terra.

R.VillasBoas

Uns Cem Anos


Eu costumava andar sempre pelos mesmos campos, aqueles que cortavam a clareira das terras do norte, onde começavam os primeiros vestígios de civilização urbana. Ali a grama era bem verde, e as árvores, muito gentis.
          Quando eu andei por cerca de cento e sessenta anos, seguindo sempre a mesma rotina incansável de ir e vir, percebi que havia um sobrado de cor branca que, por ora, também era verde de tons claros. Na verdade eu não me lembro da cor, acabo de inventá-la para não tomar postura de mentiroso. Era um sobradinho muito alto; não tão alto; era minúsculo. Que disparate!
          A velha Eunice, de cabelos sujos feito terra, ainda me oferecia torta de jambo com cristais de laranja, mesmo depois de todo aquele século percorrido. Eu desejava que a velhota morresse logo e levasse com ela aqueles bolos horríveis que insistia em me oferecer. Meus olhos se fechavam, os lábios formavam um sorriso forçado e as pernas me levavam para muito longe, onde o pensamento desejava desgraças à mulher que fazia confeitos de jambo. Quem é que gosta de jambo?!
          Comecei a me distanciar para outros cantos, onde as águas do litoral batiam serenas e o vento açoitava os panos da barraca em que dormiam os sem-vergonhas que não tinham seus aposentos. Era o extremo norte, e ali não se podia ver mais o sobradinho cuja cor não me lembro, tampouco a sujeira da velha desgraçada da Rua 15, do terceiro quarteirão.
          Sabe que depois de um tempo (uns cem ou duzentos anos, talvez), a velha morreu de pura juventude da alma? Dizem que a pobre simplesmente caiu dura e seu espírito saiu gritando aos ventos, feliz da conta por conseguir libertar-se do corpo infame e obsoleto da senhora que fazia aquelas porcarias em que se colocava jambo e laranja cristalizada.
          Outro dia - depois de muito tempo - fiquei com fome e tirei da bolsa um pedaço pequeno de pão de aspecto corado com alguns cristais cítricos em sua superfície. Tinha cheiro de laranja e um sabor excelente. Estava ali há gerações incontáveis e eu amava me deliciar com aquilo. Eu amava bolo de jambo!

R.VillasBoas